A influência foi enorme. Foi o Prof. Herculano de Carvalho que,
pouco depois de eu ter concluído a licenciatura em 1952, me convidou
a entrar (como bolseiro) para o Grupo de Química que ele estava a
organizar tendo em vista o desenvolvimento da área de Radioquímica
no seu Departamento e a preparação de gente para a futura Junta de
Energia Nuclear (JEN). É interessante salientar que já nessa altura
se praticavam métodos radioquímicos no seu laboratório
designadamente um método para determinar a concentração de radão em
águas, sobretudo nas águas minerais. Era o tempo em que a
radioactividade nestas águas era considerada uma característica
altamente benéfica. De facto, lembro-me bem que nos rótulos de
certas garrafas se punha em destaque essa sua característica, a
água mais radioactiva do mundo... (risos)... Não se fazia uso,
porém, de nuclidos radioactivos artificiais. Talvez por isso ele me
tivesse manifestado, logo de início, o seu gosto por ver incluída no
seu laboratório a aplicação desses radionuclidos. Devo confessar que
a ideia me despertou um enorme interesse. Foi
nesse caso o Prof. Herculano de Carvalho que o estimulou a sair para
o estrangeiro? Como é que obteve a bolsa?
Ele estava preocupado em dar preparação a todos os bolseiros e
sabendo que ela não podia ser realizada em Portugal, começou a
procurar diversos lugares onde pudesse fazer-se. Mas não foi só ele.
Foram também outros dirigentes da Comissão de Estudos, como o Prof.
Leite Pinto, que era o presidente, e o Prof. Carrington da Costa, da
Universidade do Porto. Surgiu uma primeira oportunidade na Isotope
School, do Centro Nuclear inglês de Harwell, próximo de Oxford, que
era o maior centro de investigação nuclear do Reino Unido, e o Prof.
Herculano de Carvalho achou que não se deveria perdê-la e
inscreveu-me.
E a sua bolsa quem a financiou?
Foi o Instituto para a Alta Cultura.
Em 1953 com 25 anos apenas, já era diplomado
pela Isotope School, em Harwell. E três anos depois diplomado pela
Reactor School, no mesmo local. Quer contar-nos um pouco da sua
experiência desse período?
Como disse há pouco, frequentei em 1953 o curso da Isotope School
no seguimento da ideia do Prof. Herculano de Carvalho que seria útil
aprender as técnicas de manipulação de espécies radioactivas, com
toda a segurança … isso era uma questão que ele considerava
absolutamente essencial … e também alguns métodos de aplicação
dessas espécies em química, sobretudo em química analítica. Esse
curso foi muito útil para mim, pois ajudou-me enormemente na etapa
seguinte da minha formação na Alemanha. Sabíamos que o curso da
Isotope School era um curso relativamente curto e na altura em que
fui frequentá-lo já se pensava numa preparação mais longa. Já se
sabia da possibilidade de ir estagiar com o Prof. Paneth, um célebre
radioquímico que não trabalhava na Alemanha mas sim no Reino Unido,
e eu mostrei-me interessado nessa possibilidade. Aconteceu, porém,
que o Prof. Paneth, que era um judeu austríaco e fugira dos nazis
para Inglaterra, tinha sido entretanto convidado para ir dirigir o
Max Planck Institut für Chemie, em Mainz. Assim eu, que era para ir
trabalhar com o Prof. Paneth para Inglaterra, como já estava
comprometido com ele, acabei por ir parar ao Max Planck Institut …
E já sabia alemão?
Não, não. Tive dificuldades grandes com o alemão. Mas como no Max
Planck todos falavam inglês, não tive propriamente dificuldades no
Instituto quanto à língua.
De certa maneira esta estada no Max Planck foi
marcante para a sua carreira?
Sim, é verdade, foi no Max Planck Institut que eu me defrontei
pela primeira vez com o fascínio da investigação. Nunca tinha
presenciado essa actividade verdadeiramente, nem convivido com gente
que a fizesse de modo sistemático, que a exercesse, nem tão pouco
com as dificuldades da investigação. Foi aí que realmente comecei a
sentir essas dificuldades. Foi nesse Instituto também que eu
reconheci a minha fraquíssima preparação, em particular no que se
refere ao trabalho experimental, e que tomei consciência da enorme
pobreza dos nossos laboratórios de química em instrumentos e
oficinas. Foi ainda aí que eu me apercebi que o caminho da
realização duma tese de doutoramento seria porventura o melhor para
preparar investigadores. Repare que nessa altura ainda não se faziam
doutoramentos no Instituto Superior Técnico, nem ninguém pensava
nisso. É pois natural que o Prof. Herculano de Carvalho tivesse
escolhido outro caminho... Apesar disso, o estágio no Max Planck
Institut foi muitíssimo proveitoso, não só por me ter dado numerosos
conhecimentos e alguma prática laboratorial, como ainda por me ter
aberto os olhos para novas perspectivas. Julgo que esta abertura que
se deu em mim e nos meus colegas, que foram levados a seguir
caminhos análogos e passaram por experiências semelhantes, terá
contribuído significativamente para que a vaga de bolseiros enviados
pelo Prof. Herculano de Carvalho para o estrangeiro, depois da
nossa, onde já estava incluído por exemplo o Fraústo, tivesse
enveredado pela via do doutoramento. Foi aí que de facto as coisas
começaram. Mas entre nós, bolseiros antigos, era unânime a opinião
que esse era o caminho (do doutoramento).
Lembra-se de alguns nomes dos seus colegas
bolseiros dessa época?
Sim, sim. Marques Videira que foi para Sheffield, Carlos Lloyd
Braga que foi para Cambridge, Amélia Rézio, Carlos Pulido e Ricardo
Cabrita que foram para Uppsala. Era um grupo de cerca de meia dúzia
de pessoas que foram para o estrangeiro mas, como disse, não para
fazerem doutoramentos. A política era fundamentalmente a realização
de estágios. E portanto as nossas estadias não passaram para além de
dois anos, à volta disso, com as dificuldades inerentes a essa dita
actividade. De facto, a maior parte dos professores que nos recebiam
não entendiam bem porque nos mandavam daquela maneira. E foi
precisamente ao regressar que trouxemos essa mensagem, que aquilo na
nossa opinião não estava a ser conduzido da melhor forma. E que
haveria que corrigir. Admito também que o próprio Prof. Herculano de
Carvalho, e outros, em contacto permanente com os seus colegas no
estrangeiro, e até com os nossos supervisores, se teriam também
apercebido dessa insuficiência, e de facto acabaram por corrigi-la.
A tal “segunda geração” já caminhou para o doutoramento.
O Prof. Peixoto Cabral, acabou por fazer o seu
Doutoramento em Ciências Básicas de Engenharia, pela Universidade
Técnica de Lisboa, em 1968. Tinha então 39 anos. Atendendo à penúria
dos laboratórios da Universidade nessa época, como conseguiu
realizar o seu trabalho experimental de doutoramento?
Fiz o trabalho experimental na Secção de Radioquímica do
Departamento de Química do LFEN (Laboratório de Física e Engenharia
Nucleares) em Sacavém, que foi criado na segunda metade dos anos 50
pela JEN e inaugurado em 1961. Pouca gente sabe que esse
Departamento foi projectado por uma equipa do Centro de Estudos do
IST, liderada pelo Eng. Fernando Marques Videira, da qual eu fazia
parte. Ele foi o primeiro dessa equipa a entrar na JEN e foi desde
logo incumbido de ir dirigir o Departamento. Eu ainda me mantive no
IST, mas efectuando já muito trabalho para o projecto da Secção de
Radioquímica. Faço notar, porém, que o LFEN foi inaugurado com os
laboratórios praticamente vazios e que o seu apetrechamento foi um
processo lento e cheio de dificuldades, inclusive de ordem
financeira. Apesar disso, a JEN era na altura a entidade com maiores
meios para a investigação, o que nos permitiu instalar no LEFN
laboratórios que, não sendo magníficos, eram os mais bem
apetrechados da área de Lisboa. No que respeita à Radioquímica, eram
mesmo os únicos onde se podia trabalhar com toda a segurança. Só no
fim de 1962 é que conseguimos obter as condições mínimas para
começar a fazer algum trabalho experimental. Foi também por essa
data que começámos a recrutar pessoal recém-licenciado e a
prepará-lo. Sabia, contudo, que só poderíamos fazê-lo parcialmente e
que se tornava necessário promover a sua saída para universidades
estrangeiras dado que, nas nossas, pouca investigação se realizava e
muito menos na área da Radioquímica. Procurámos, por isso,
estabelecer contactos com professores de algumas daquelas
universidades ou reatar antigas relações, como por exemplo com o
Prof. Maddock, da Universidade de Cambridge, que conhecíamos desde
os tempos do Centro de Estudos do IST. Procurámos por outro lado
obter a ajuda de certos investigadores portugueses com alguma
formação nesta área, como o Prof. Pinto Coelho da Universidade de
Coimbra. Mas foi sobretudo o Prof. Maddock que nos prestou um
auxílio precioso, na medida em que orientou três teses de
doutoramento, uma das quais a minha, e intercedeu junto de colegas
seus da Universidade de Cambridge para se encarregarem doutros
doutorandos. É interessante notar que em quase dez anos conseguimos
doutorar na Secção de Radioquímica cinco pessoas. É claro que não
foi nada fácil para mim realizar o trabalho experimental para a tese
e simultaneamente zelar pela gestão da secção nesta primeira fase de
desenvolvimento. Não admira por isso que só em 1967 o tivesse
concluído e só em 1968 tivesse defendido a tese. Talvez valha a pena
referir que foi o segundo doutoramento em Química no IST. O primeiro
foi o do Fraústo. Foi um doutoramento tardio, mas foi dos primeiros…
(risos).
Em 1960, aos 32 anos, é chefe de trabalhos no
Laboratório de Física e Engenharia Nucleares, onde criou e liderou
um grupo de Investigação em Radioquímica. 1968 encontra-o já
investigador-chefe e 1978 como investigador-coordenador do
Departamento de Química do LNETI. Finalmente em 1992 é nomeado
Director do IJF. Ou seja, desde muito novo ocupou postos de chefia
com pesadas responsabilidades em termos de gestão financeira e de
recursos humanos, de que forma isso influenciou (afectou?) a sua
carreira em investigação cientifica?
Bom, prejudicou num certo sentido porque, como sabem, todas essas
tarefas exigem tempo, por vezes até muito tempo. Perde-se muito
tempo com burocracias…
e o trabalho de gestão de recursos humanos, não
é só burocracia…
Sim, exactamente. De qualquer modo também é estimulante. Passei
para coordenador do Departamento na altura em que o Marques Videira
foi convidado a criar uma nova Direcção Geral na JEN destinada a pôr
em prática um programa de instalação no nosso país de reactores
nucleares para produzir energia. Julgo que terá sido útil para o
Departamento a minha passagem, devido à persistência em defender uma
boa preparação básica das pessoas e à convicção, que há pouco
referi, de que a melhor maneira de a levar a cabo era aquela que
passaria pela realização dum doutoramento. O que nem sempre foi bem
atendido pelo Dr. Carlos Cacho, Director do LFEN, nem por um ou
outro assistente, obrigando-me a uma luta contínua. Consegui
fomentar no Departamento um ambiente estimulante e isso terá
contribuído grandemente para que se tivessem formado nele grupos de
investigação com uma dimensão razoável que permitiu o seu
desenvolvimento e continuidade. Grupos que ganharam crédito e o
respeito dos nossos colegas de Laboratório e da Universidade.
Criou-se escola, creio eu.
Os lugares de topo oferecem a vantagem de poder
por em prática projectos muito ambiciosos…
Exactamente…
…mas num laboratório de estado, ou numa
instituição digamos estatal, é necessário obter financiamentos e
para isso é preciso saber comunicar com o poder político, ou seja,
de formular recomendações que são aceites. Qual foi a sua
experiência nesse domínio?
É certo que a obtenção de meios financeiros foi uma tarefa muito
difícil. Foi necessário insistir, insistir muitas vezes, procurar
persuadir as entidades superiores, digamos assim, no sentido de
encontrarem esses meios, e de os persuadir de que efectivamente os
motivos eram nobres, eram importantes... Mas também procurámos obter
esses meios no estrangeiro. Inicialmente era muito complicado porque
a IAEA (Agência Internacional de Energia Atómica), por motivos de
natureza política, tinha uma certa dificuldade em aceitar a ideia de
auxiliar Portugal…
…Porque era uma ditadura…
…Havia o problema político relacionado com a questão colonial,
que julgo terá criado dificuldades sérias desse ponto de vista mas,
mesmo assim, conseguimos obter algum auxílio da IAEA. Depois, com a
vinda da revolução, as coisas felizmente alteraram-se e então, a
partir daí, a IAEA passou a ser muito mais aberta e conseguiram-se
auxílios financeiros muito mais substanciais.
E quem eram as entidades superiores que davam
financiamento…
Na parte relativa ao LFEN era a Junta de Energia Nuclear que
principalmente financiava…
Que dependia directamente da Presidência do
Conselho de Ministros…portanto estava muito perto do poder político…
Sim, exactamente. Nem havia outra alternativa, não havia nenhuma
Fundação que permitisse obter financiamentos… já havia a Fundação
Gulbenkian. Mas, de qualquer modo, seria muito difícil a Fundação
Gulbenkian financiar projectos relacionados com a Energia Nuclear.
Em 1982, publica na revista Arqueologia um
artigo intitulado "Instalação dum laboratório de radiocarbono: um
projecto adiado". A unidade de datação pelo 14C, cuja instalação é
da sua responsabilidade, entra em funcionamento em 1986. Ou seja
houve alguns percalços pelo caminho, quer contar-nos um pouco sobre
o assunto?
Desde 1975 que procurei enveredar por caminhos de investigação em
áreas de intersecção das Ciências com as Humanidades sobretudo com a
Arqueologia. Sabia que uma das dificuldades que os arqueólogos
portugueses tinham era no domínio da datação. Necessitavam de datas
para alguns materiais que iam recolhendo e não era fácil obtê-las em
laboratórios estrangeiros. Sabia além disso que seríamos capazes de
instalar no Instituto, que nessa altura já não pertencia à JEN mas
sim ao LNETI, uma unidade de datação pelo radiocarbono baseada no
processo convencional, isto é, na medição da actividade do 14C
presente nas amostras. E consegui persuadir o presidente do LNETI,
que era o Prof. Veiga Simão, a meter um bolseiro para esse fim, o
Monge Soares, e a financiar a sua preparação em Cambridge.
Aconteceu, porém, que mais tarde, devido a uma má informação do Dr.
Carvalho Rodrigues, do Departamento de Física, que não percebeu
porque é que eu propunha a instalação duma unidade convencional
quando já existia um novo processo, o de espectrometria de massa de
iões acelerados, com maior produtividade e que permitia datar
amostras muito mais pequenas, a iniciativa foi travada. É claro que,
quando fiz a proposta, estávamos perfeitamente conscientes desta
realidade, mas tínhamos consciência também de que a entrada do
acelerador na datação pelo 14C não tornara obsoleto o processo
convencional. Basta dizer que a maior parte das amostras dos
arqueólogos têm tamanho suficiente para serem datadas por este
processo. Sabíamos ainda que o custo de primeira instalação do
processo convencional era muitíssimo menor que o do processo do
acelerador e que estava ao alcance do LNETI, ao contrário do que se
passava com o outro. Enfim, acabámos por reconhecer que não
avançaríamos se não tivéssemos o auxílio dos arqueólogos e daí o ter
escrito o citado artigo. Valeu-nos o director do Museu Nacional de
Arqueologia que conseguiu obter um subsídio e com isso levar o Veiga
Simão a aprovar a proposta. Mas levou tempo. Devo acrescentar que
esta unidade de datação foi de grande utilidade para os arqueólogos
e ainda continua a ser....
Quem era na altura o director do Museu Nacional
de Arqueologia? E donde veio o financiamento?
Era o Dr. Francisco Alves e o financiamento veio do Instituto
Português do Património Cultural.
O Prof. Peixoto Cabral foi não só pioneiro na
introdução das técnicas de datação em Portugal como também antecipou
o interesse da interface entre a Química e as Ciências Humanas. Como
surgiu o seu interesse por esta interface?
Sempre me interessei por algumas áreas das Ciências Humanas. Por
outro lado, aconteceu que ao consultar a bibliografia científica, no
decurso da minha actividade como químico, me fui dando conta de
aplicações importantes de alguns métodos praticados no LFEN em
estudos de tais áreas, o que ajudou a consolidar esse interesse. Um
dia, em 1974, encontrei acidentalmente no elevador da minha casa o
meu vizinho Dr. Montalvão Machado, que na altura desempenhava um
alto cargo na Associação dos Arqueólogos Portugueses, a quem contei
um pouco do que lera. Aconselhou-me então a expor o assunto na
referida Associação, o que fiz numa conferência marcada para o
efeito. A esta conferência assistiram alguns arqueólogos que ficaram
por sua vez interessados, o que facilitou futuras relações. Mas não
foi apenas o meu interesse por essas áreas que contribuiu para a
viragem do meu percurso de investigador. Foi também a decisão
política do governo português de se abandonar a via nuclear para a
produção de energia. Esta decisão trouxe como consequência a
extinção da JEN e, naturalmente, alterações significativas na
orientação das actividades dos órgãos que a constituíam, em
particular do LFEN que transitou para o LNETI criado em 1977, cujo
nome mudou mais tarde para INETI...
Já falámos em LFN, LNETI, INETI, ou seja
começámos no LFN e acabámos no ITN…
... Chegaram mesmo por essa altura a transmitir superiormente que
teríamos de mudar de vida, de orientá-la noutras direcções embora
não nos tivessem definido com clareza quais os novos objectivos a
atingir. Foi então que eu, no que se refere ao meu grupo, tomei a
iniciativa de contactar directamente alguns arqueólogos
informando-os da nossa disponibilidade em colaborar com eles em
projectos de investigação onde se reconhecessem vantagens em aplicar
métodos que tínhamos desenvolvido, particularmente o de análise por
activação com neutrões. E surgiram alguns projectos. Foi deste modo
que demos início a uma série de trabalhos sobre cerâmicas
arqueológicas, actividade que ainda hoje se mantém. Mas não foi só
isso que fizemos. Outras coisas foram realizadas, como a análise
não-destrutiva de artefactos metálicos pré-históricos, a análise
não-destrutiva de moedas antigas para apoiar estudos de história
monetária, a datação pelo radiocarbono de que falei há pouco, etc..
Se quiserem saber mais pormenorizadamente o que efectuámos nos dez
primeiros anos de arqueometria no LNETI leiam o artigo que sobre
isso publiquei em 1989 na revista Arqueologia... Quanto aos outros
dois grupos do Departamento, o de Química dos Elementos f, liderado
pelo Pires de Matos, e o de Química do Estado sólido, liderado pelo
Manuel de Almeida, a situação criada pelo abandono da via nuclear
levantou talvez maiores dificuldades. Havia pressões para que se
acabasse com a investigação fundamental que neles estava em curso e
se substituísse por outra mais virada para a indústria. Isso criou
algumas perturbações e tornou-nos a vida complicada. Todavia
continuei, na minha qualidade de director do Departamento, a
defender com veemência junto do Prof. Veiga Simão que tal mudança, a
concretizar-se, deveria ser feita com muita precaução e tendo sempre
em conta que aqueles grupos estavam ainda em formação e não deveriam
ser prejudicados. Foi uma luta difícil que felizmente terminou com
vantagens para ambos os grupos, na medida em que conseguiram
produzir um excelente trabalho, doutorar muita gente, e ficar bem
mais fortificados. Mas remou-se sempre contra a maré, pois não era
essa de facto a vontade do Veiga Simão. Verdade se diga, no entanto,
que ele sempre reconheceu o grande mérito das suas investigações e,
talvez por isso, acabou por aceitar a situação. O único grupo do
Departamento que continuava a fazer aplicações era o meu.
Simplesmente também era criticado, porque muitas delas eram mais
para o lado das humanidades do que para o lado da indústria...
(risos).
No entanto uma parte significativa da sua
actividade científica acaba por ser na área das humanidades.
Sim, a partir do fim dos anos 70 a minha maior contribuição foi
dada em áreas de intersecção com as Humanidades. Mas não deixei de
continuar interessado nalgumas áreas da Química e da sua intersecção
com outras disciplinas das Ciências, em particular da Geoquímica.
Com efeito, o grupo que eu liderei realizou, para além de trabalhos
de Arqueometria, muitos outros trabalhos sobretudo de química
analítica e geoquímica ou, dito doutro modo, de ciências do
ambiente. Mais, colaborámos também umas vezes por outras nalguns
trabalhos do grupo do Pires de Matos e do grupo do Manuel de
Almeida.
O seu percurso científico passou pela Direcção
do Instituto José de Figueiredo (actualmente Instituto Português de
Conservação e Restauro), de Maio de 1992 a Dezembro de 1993. É do
domínio público que se demitiu. À primeira vista tratava-se do Homem
certo no lugar certo. O que é que não funcionou?
Bom, o problema do Instituto José de Figueiredo é um problema
complicado…(risos).
…bicudo…(risos)…
….eu fui para o Instituto José de Figueiredo a convite da Dra.
Simoneta Afonso, que era a directora do IPM (Instituto Português de
Museus) do qual dependia o IJF. A princípio devo confessar que
hesitei, mas acabei por me deixar aliciar e aceitei. Quando aceitei,
lembro-me perfeitamente de ter referido à Dr. Simoneta que uma coisa
absolutamente essencial era preparar gente de maneira conveniente, a
tal passagem por um doutoramento…
…na sequência de todo o seu percurso…
…exactamente. Falei-lhe nisso e ela pareceu-me estar de acordo
com a proposta. Julgo que ela própria estava interessada em promover
a entrada de gente nova no IJF, com ideias novas, seguindo caminhos
novos. E que terá tido dificuldades para obter meios financeiros que
permitissem a concretização desse propósito. Os museus, que a Dra.
Simoneta acima de tudo procurava modernizar, levavam-lhe uma enorme
fatia do orçamento. E da fatia magra que sobrava para o IJF uma boa
parte destinava-se às despesas de conservação e restauro de objectos
dos museus, sobretudo dos seleccionados para exposições que ela se
empenhava em promover em ritmo acelerado. Já tive dificuldade em
introduzir o primeiro doutorado no IJF, que era o António João Cruz.
E, apesar de ele ter o doutoramento e se mostrar bastante apto, não
consegui que ele entrasse para o quadro do Instituto. Trabalhou
sempre como contratado, a quem se pagava com recibo verde. Também me
recordo do caso da Carmo Serrano, agora no IPCR, que me tinha
aparecido num dado instante para fazer um estágio, para a qual
procurei obter uma bolsa e que nunca consegui. Ela acabou por
realizar o estágio sem retribuição. Isso leva a pensar que a Dra.
Simoneta teria tido dificuldades em obter financiamentos... Eu
gostaria de ter reformado o IJF introduzindo uma nova mentalidade,
novas pessoas com uma formação sólida, particularmente na área da
Química. É certo que existia lá gente de boa qualidade, sobretudo
excelentes artífices. Havia pessoas competentes para a realização de
certas tarefas. Mas a maior parte delas tinha uma preparação
científica básica muito fraca. E ela é muito necessária... O meu
primeiro ano no IJF foi estimulante, na medida em que me permitiu
enfrentar uma série de questões interessantes no âmbito da
Conservação e Restauro. Permitiu-me, além disso, iniciar o projecto
de estudo dos Painéis do Nuno Gonçalves e realizar o estudo da
pintura de Silva Porto. Vivi entusiasmado, na tentativa de criar
realmente condições novas no Instituto, de fomentar a investigação
quer na área da Conservação quer na área da História da Arte... Mas
nos últimos meses, quando comecei realmente a verificar que nada
daquilo que eu gostaria de introduzir tinha possibilidade de
avançar…
... É curioso que a Dra. Simoneta me deu sempre a sensação de que
concordava comigo, e eu acreditei durante ainda um bom pedaço de
tempo que ela teria possibilidade de obter essas condições; e ainda
estou crente que ela terá feito esforços nesse sentido, que era esse
de facto o seu desejo, mas que ela própria também foi vencida por
uma série de dificuldades de diferentes naturezas. Ela é realmente
uma pessoa inteligente, dinâmica e voluntariosa. Dei-me muito bem
com ela. Não tive, pode dizer-se, nenhuma dificuldade na relação. Se
ela tivesse encontrado as tais condições, eu teria continuado a
trabalhar no IJF. Mas não foi capaz, e quando eu me compenetrei que
efectivamente não era mesmo possível realizar reformas
significativas no Instituto, achei que o melhor era sair... Confesso
que houve também coisas, relacionadas com o comportamento de algumas
pessoas do Instituto, que contribuíram para acelerar a saída. Por
vezes, é difícil lidar com algumas dessas pessoas, em particular
porque têm uma mentalidade de tal forma diferente da nossa, eu digo
da nossa formada no âmbito das Ciências, que é muito difícil
estabelecer ou manter o diálogo com elas. Lembro-me, por exemplo,
que a dada altura do projecto sobre a pintura do Nuno Gonçalves se
criou inesperadamente entre mim e a minha adjunta, com quem tinha
tido até aí uma boa relação, um estado de tensão por causa da
recolha de amostras para a análise da camada pictórica. Estávamos a
estudar o painel do São Vicente na cruz em aspa. Esta tábua
apresenta-se muito deteriorada por xilófagos e eu achava, perante
uma tão grande abundância de estragos, que a recolha de uma dúzia de
finíssimas e pequeníssimas amostras não aumentaria
significativamente os danos, mas em contrapartida traria com certeza
benefícios para o conhecimento da técnica do Nuno Gonçalves. Ela
retorquia, porém dogmaticamente, que era uma barbaridade fazer isso.
Acabei por decidir que as recolhessem e ela foi fazer queixa à Dra.
Simoneta, o que achei muito feio. Como não tenho feitio para entrar
em guerra com as pessoas, quando me fazem coisas deste teor aquilo
que me apetece é ir-me embora.
A prática da Conservação e Restauro como
disciplina científica tem tido no nosso País um percurso tortuoso .
Por um lado publica-se muito pouco, quer em revistas internacionais
com referee quer em publicações nacionais, por outro a área da
Conservação nem sequer é considerada como área científica no
financiamento a projectos pela Fundação para a Ciência e Tecnologia.
A Conservação e Restauro pode vir a ter algum futuro em Portugal?
Eu penso que a Conservação e o Restauro podem e
devem ter importância, porque há realmente um património que, em
comparação com o de Itália, não se pode dizer que seja muito
grande…(risos)…mas que é significativo. É o nosso património, que
nós devemos preservar. Eu acho, portanto, que a Conservação e o
Restauro são actividades muito importantes, que deveriam ser
realizadas da melhor maneira. Considero, como disse há pouco, que a
formação de base da maior parte das pessoas com quem convivi era
relativamente modesta. Apercebi-me que certas coisas que entravam no
IJF para restauro criavam dificuldades e problemas enormes. A
pintura de cavalete seria talvez a área mais fácil para o Instituto,
onde havia uma maior experiência. Lembro-me, por exemplo, de um
objecto lindíssimo, provavelmente medieval, com trabalho em esmalte,
em que este último estava a deteriorar-se, a cair, e ninguém sabia
fazer nada por ele... e era absolutamente indispensável que se
fizesse. Havia áreas onde não se sabia mesmo nada. Era óbvio que se
precisava de formar pessoas, em diversos domínios, para que se
pudesse atender devidamente a tudo o que na realidade havia para
fazer. Considero pois que a Conservação e o Restauro são actividades
importantes, que têm futuro, e que mereciam, de facto, um grande
cuidado no que se refere à formação de pessoal competente. Não há
nenhuma tradição no nosso País no que se refere às licenciaturas, e
sobretudo aos doutoramentos em Conservação. Quem são as pessoas
doutoradas no nosso país em matéria de Conservação e Restauro?
…A Ana Isabel Seruya12…
… a Ana Isabel Seruya é uma física que fez uma tese na área da
Arqueometria, e não da Conservação e Restauro…
Mas também se a Fundação para a Ciência e Tecnologia não financia
projectos de investigação em Conservação, como é que se faz um
doutoramento sem um projecto de investigação? Neste momento, a FCT
não contempla como área a Conservação, e a área de Estudos
Artísticos há 3 anos que está à espera de avaliação…por isso, assim,
é muito complicado.
Mas isso deve-se a quê?
Não sei, não é dada qualquer informação…
Voltando ao nuclear, existe uma espécie de
anátema contra o nuclear. Independentemente das opções que o nosso
País possa vir a tomar acerca do futuro da energia nuclear, faz
sentido não possuir uma forte competência nesse domínio?
Eu ainda continuo a pensar que é vantajoso que no nosso País
existam técnicos especializados capazes de avaliar de forma
competente tudo o que se relaciona com o problema da produção de
energia nuclear e das questões que lhe estão associadas. O antigo
LFEN criou-se para os preparar. Foi dissolvido quando ainda tinha
pouca idade, foi incluído depois no LNETI e ressuscitado mais tarde
sob o nome de ITN. Apesar disso, ainda lá ficaram técnicos muito
competentes nesse domínio. Mas se no ITN não estiverem atentos à sua
manutenção, lá se vão as competências... No que respeita às
Universidades, acho que num certo sentido se abandonou tudo ou quase
tudo o que se relacionava com o nuclear, mesmo questões importantes
do ponto de vista da investigação, que passam pelo uso de espécies
radioactivas e de métodos nucleares. Por exemplo, quando eu comecei
a dar aulas de Radioquímica no Técnico, no ano lectivo de 1968/69, a
disciplina era obrigatória e tinha a duração de dois semestres.
Alguns anos depois passou a optativa, com a duração de um semestre.
E julgo que, depois da minha jubilação em 1998, deixou de haver tal
disciplina. Hoje, creio que ninguém a ensina em parte alguma do
nosso País, nos cursos normais. Mas, mais grave ainda, raramente se
criaram condições laboratoriais que permitam a manipulação dessas
espécies com toda a segurança, o que é inacreditável. E ainda há
gente no nosso País, fora do ITN, que faz uso de espécies
radioactivas, como alguns bioquímicos…
…na medicina…
... sim alguns médicos têm mantido também interesse pelas
espécies radioactivas. A radiofarmácia continua ainda muito viva, é
uma área de investigação onde se faz muita coisa, e as aplicações
dos radiofármacos não diminuíram, antes pelo contrário. Usam-se cada
vez mais em certos hospitais...
... Mas, voltando à sua questão, julgo que será vantajoso manter
competências. A verdade é que a via nuclear para a produção de
energia é uma das vias importantes para o Homem. Em muitos países, a
energia nuclear ainda está a ser produzida e, provavelmente,
continuará a sê-lo por muitos anos. Consciente dos perigos que tal
produção acarreta, penso que ela deve manter-se como hipótese a
considerar no futuro e que deveríamos zelar pala manutenção das
referidas competências.
Na sua opinião, deverá o objectivo do ensino
Universitário em Química ser o de educar um elevado número de alunos
com conhecimento superficial de Química ou poucos com conhecimento
profundo do assunto?
Para o ensino Universitário em Química... não estou a pensar na
formação de professores para o ensino secundário... sou partidário
dum ensino para um pequeno número de alunos feito em profundidade…
Acha que isso é compatível com os 3 anos que o
documento de Bolonha sugere?
... É capaz de ser muito difícil fazê-lo em 3 anos, sobretudo se
quisermos introduzir-lhe uma forte componente experimental o que me
parece essencial.
Até agora na sua carreira científica, o que
mais lhe agradou e o que mais lhe desagradou fazer?
Dum modo geral, tenho o hábito de me apaixonar pelos problemas
que vou deparando pelo caminho e de me entregar à sua resolução com
grande entusiasmo. Deste modo, quase tudo o que tenho feito me tem
dado satisfação. Se as coisas me parecem desinteressantes, não pego
nelas. Sou incapaz praticamente de lhes prestar atenção. Agora se
lhes descubro interesse, entrego-me a elas com paixão e isso dá-me
prazer, diverte-me. Tenho às vezes dito a algumas pessoas... e é
verdade... que tenho sido uma criatura feliz porque tenho levado a
vida a fazer coisas de que gosto. E quando elas começam a tornar-se
feias, por qualquer motivo, prefiro libertar-me delas do que
prosseguir com amargura.
Quer deixar algum conselho a um jovem Químico
em início de carreira?
Que procure descobrir a beleza das questões interessantes,
propostas por alguém ou encontradas por ele. E uma vez isso
conseguido, que procure abraçá-las e resolvê-las com entusiasmo, com
a paixão que normalmente se tem por tudo que é belo.
Perfil biográfico do Professor João Manuel
Peixoto Cabral
João Manuel Peixoto Cabral nasceu em Torre de
Moncorvo, a 30 de Maio de 1928, completou a Licenciatura em
Engenharia Química, pelo Instituto Superior Técnico, em 1952, obteve
diplomas pela Isotope School, Harwell, em 1953, e pela Reactor
School, Harwell, em 1956, doutorou-se em Ciências Básicas de
Engenharia, pela Universidade Técnica de Lisboa, em 1968, e obteve a
Agregação em Química Inorgânica e Analítica, pela mesma
Universidade, em 1971.
Iniciou, em 1952, a sua actividade de investigação em química
analítica usando técnicas radioquímicas, no Centro de Estudos de
Química da Comissão de Estudos de Energia Nuclear, no Instituto
Superior Técnico, sob a supervisão do Prof. A. Herculano de
Carvalho.
Em 1960, ingressou no Laboratório de Física e Engenharia Nucleares (LFEN)
da Junta de Energia Nuclear, em Sacavém, onde criou um Grupo de
Radioquímica. Durante alguns anos, foi, também, membro do Gabinete
de Estudos da empresa Amoníaco Português. Foi nomeado Director do
Departamento de Química do LFEN em 1968, cargo que desempenhou até
1992, altura em que foi nomeado director do Instituto José de
Figueiredo (1992-1993).
Começou a exercer funções docentes no Instituto Superior Técnico em
1968, tendo sido contratado como professor catedrático convidado em
1976. Leccionou Química Geral, Métodos Instrumentais de Análise e
Radioquímica.
Aposentou-se em Maio de 1998 com a categoria de investigador
coordenador do quadro de pessoal do Instituto Tecnológico e Nuclear,
funções que desempenhava desde 1979.
A sua principal actividade científica foi desenvolvida nos domínios
da radioquímica, química analítica e química inorgânica. Quando a
Junta de Energia Nuclear foi dissolvida, orientou as suas
actividades para áreas de intersecção entre as ciências
físico-químicas e as ciências humanas. Dessa actividade resultou a
criação de um laboratório de datação por radiocarbono e de um grupo
de arqueometria.
É de realçar que foi o responsável pela implementação da área
científica da Radioquímica no Laboratório de Sacavém e que foi o
grande impulsionador da introdução, em Portugal, de uma abordagem da
Arqueologia e da Arte utilizando metodologias da Química e da
Física.
Publicou cerca de uma centena e meia de trabalhos científicos em
revistas da especialidade, dos quais cerca de metade no domínio da
arqueometria.
Continua a colaborar com investigadores do Instituto Tecnológico e
Nuclear e iniciou recentemente uma colaboração com o Departamento de
Conservação e Restauro da Universidade Nova de Lisboa.
António Pires de Matos; Jaime da Costa Oliveira |